Sábado, 27 de abril de 2024
Volver Salamanca RTV al Día
O mostrengo
X

O mostrengo

Actualizado 06/10/2023 07:54
Miguel Nascimento

O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a voar;

À roda da nau voou três vezes,

Voou três vezes a chiar,

E disse: «Quem é que ousou entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

Meus tectos negros do fim do mundo?»

E o homem do leme disse, tremendo:

«El-Rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?

De quem as quilhas que vejo e ouço?»

Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou imundo e grosso,

«Quem vem poder o que só eu posso,

Que moro onde nunca ninguém me visse

E escorro os medos do mar sem fundo?»

E o homem do leme tremeu, e disse:

«El-Rei D. João Segundo!»

Três vezes do leme as mãos ergueu,

Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:

«Aqui ao leme sou mais do que eu:

Sou um Povo que quer o mar que é teu;

E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo;

Manda a vontade, me ata ao leme,

De El-Rei D. João Segundo!»

Mensagem, Fernando Pessoa

O nosso caminho é preenchido, entre muitas outras coisas, com os nossos medos e também com a coragem necessária para os superar. Enfrentamos mostrengos externos e outros tantos internos sem sabermos de quais temos mais medo. Mesmo a tremer seguimos em frente, cumprindo a nossa demanda. Na literatura da portugalidade o “Mostrengo”, descrito como uma figura tão deformada quanto perigosa e assustadora, é a personificação do medo e do receio - o Adamastor - magistralmente identificado nos “Lusíadas” do grande Camões.

A “Mensagem” de Fernando Pessoa, recupera essa figura mítica e tenebrosa, qual mostrengo e guardião do mar, ponto de paragem obrigatória da nossa viagem realizada em todas as águas. Tal como os marinheiros da nossa epopeia dos “Descobrimentos” também nós temos que enfrentar os nossos medos, passar o “Cabo das Tormentas” para o transformarmos em cabo “Boa esperança”. O mostrengo é o oposto da ordem estabelecida. É uma figura desastrada e medonha, um estafermo absolutamente perturbador.

Mas o mostrengo é também aquele que mostra e revela. O quadro dos perigos que enfrentamos a todo o tempo é, acima de tudo, o teatro de operações das nossas aventuras que se alavancam na coragem para superarmos os nossos piores receios e medos. Ao avançarmos vamo-nos revelando e identificando forças que julgávamos não possuir.

Depois de navegarmos nas águas do mundo novo, deixando para trás o mostrengo que nos atormentava, ficamos orgulhosos da nossa coragem que aparentemente não existia em nós mas que, ao ser convocada, cumpriu com eficácia e galhardia a sua missão. Às vezes, e sobretudo nas noites de breu, temos que sair do sofá do nosso conformismo para desafiarmos o mostrengo que está no fundo do mar. Ele não gostará da nossa investida. Fará tudo para nos amedrontar.

Mas se quisermos seguir em frente temos que navegar por mares desconhecidos e caminhar por trilhos novos entre outros que devemos desenhar e desbravar. Se ousarmos perturbar as cavernas onde o mostrengo se abriga teremos que enfrentar as consequências, tornando-nos, forçosamente, mais fortes. E o mostrengo pode voar e rodar três vezes a chiar à volta da nossa caravela para nos fazer tremer e recuar.

E nós, até podemos tremer três vezes, mas não deixaremos o leme vacilar porque quando o agarramos com firmeza somos mais do que nós. Somos todos os que pensam e actuam como nós. Somos uma geração feita de cumplicidade e solidariedade. Somos princípio e fim de uma determinada forma humanizada de viver. Somos muito mais do que a nossa singularidade.

Somos exemplo para os outros. E deles recebemos a força da coragem para superar o medo e as tormentas que o mostrengo nos quer impor. A nossa caravela tem que seguir pelo mar adentro! Ela vacilará muitas vezes. Será abalroada pelas ondas das trevas do fim do mudo e pelo esvoaçar tenebroso do mostrengo. Mas, se agarrados ao leme somos mais do que nós, poderemos certamente mais do que julgamos. Aí embrulhados nessa vontade maior nos ata ao leme, lutaremos por tudo o que é nosso mesmo que seja necessário revolvermos as trevas do fim do mundo para cumprirmos o que se deve cumprir.

La empresa Diario de Salamanca S.L, No nos hacemos responsables de ninguna de las informaciones, opiniones y conceptos que se emitan o publiquen, por los columnistas que en su sección de opinión realizan su intervención, así como de la imagen que los mismos envían.

Serán única y exclusivamente responsable el columnista que haga uso de nuestros servicios y enlaces.

La publicación por SALAMANCARTVALDIA de los artículos de opinión no implica la existencia de relación alguna entre nuestra empresa y columnista, como tampoco la aceptación y aprobación por nuestra parte de los contenidos, siendo su el interviniente el único responsable de los mismos.

En este sentido, si tiene conocimiento efectivo de la ilicitud de las opiniones o imágenes utilizadas por alguno de ellos, agradeceremos que nos lo comunique inmediatamente para que procedamos a deshabilitar el enlace de acceso a la misma.