Sempre tive curiosidade em relação a Espanha. A RTVE tem muita responsabilidade nisso. Há muitos anos os habitantes da Raia tinham o privilégio de contar com a RTVE para fazerem um contraponto em relação ao canal do Estado português, a RTP. Na geografia de fronteira contávamos com outra opção de peso em matéria informativa e de entretenimento. A televisão privada só chegou a Portugal a 6 de Outubro de 1992 com a primeira emissão da SIC ? Sociedade Independente de Comunicação. Reconheço hoje que essa opção inicial e transfronteiriça formatou, num sentido muito positivo, a minha visão de Espanha. Nunca tive receio sobre o outro lado da fronteira. Antes pelo contrário, sentia atracção e uma vontade enorme em passar a linha e conhecer o território contíguo que falava um língua muito próxima da nossa. Hoje confirmo, com prazer, essa minha expectativa de adolescente. O encanto não se desvaneceu. Aumentou de forma exponencial. Naturalmente, a RTP era sempre o canal do dia, mas a RTVE ganhou um protagonismo crescente na minha casa e por diversas razões. O meu pai gostava de ver as notícias de Espanha e ficava fascinado com as grandes galas do mundo hispânico e, fundamentalmente, com a transmissão dos fantásticos espectáculos musicais. Por outro lado, o futebol juntava-nos na sala. O Real, o Atlético de Madrid e o Barcelona passaram a ser segundas equipas do nosso coração em função deste ou daquele jogador. Lembro-me das grandes jogadas do Futre no Atlético de Madrid, das grandes equipas do Real Madrid dos anos 80 e 90 onde jogavam atletas de eleição como Emílio Butragueño, Sanchís, Michel, Chendo, Rafael Martín Vazquez, Camacho, Hugo Sanchéz, Gordillo, Buyo, Jorge Valdano, Santillana, Juanito, entre outros? e no Barcelona de Guardiola, Guilhermo Amor, Zubizarreta, Gary Lineker, Begiristain, Goikoetxea, Bakero, Julio Salinas, Bernd Schuster (depois no Real), Michael Laudrup, Ronald Koeman, entre outros. Na altura, era ainda estudante do ensino secundário e lembro-me de ter aulas ao Sábado de manhã. Chegava a casa a precisar de um merecedor descanso depois de uma semana intensa de trabalhos. A tarde, entre muitas outras coisas, tinha alguns momentos de RTVE com a série de desenhos animados protagonizada pelas "andanzas del ingenioso Hidalgo Don Quijote y su inseparable escudero Sancho Panza". Ainda guardo na memória a poderosíssima voz off que situava a grande obra de Miguel de Cervantes "en un lugar de la Mancha de cuyo nombre no quiero acordarme?.". Desde então que o cavaleiro montado no seu fiel cavalo "Rocinantes" e acompanhado do seu inseparável escudeiro Sancho Pança povoam o meu imaginário no combate aos "moínhos de vento" que todos nós temos que enfrentar. Anos mais tarde e depois de muitas demandas na raia central ibérica um amigo que partilha deste sentimento profundo da "alma ibérica" ofereceu-me a obra de Cervantes, escrita em Castellano, pedindo-me que nunca deixasse de acreditar na fronteira como traço de união e de cooperação para o desenvolvimento de um território que tem mais coisas a uni-lo do que a separá-lo! Do baú das memórias da RVTE não resisto em lembrar a famosa série de desenhos animados de "Mazinger Z", um ídolo extraordinário que me ajudou a moldar a esperança no futuro e a dar força à eterna luta do bem contra o mal. Com Mazinger Z também consegui voar e conhecer o mundo nos equilíbrios e desequilíbrios sem sair da minha sala de descanso do Sábado à tarde. Por vezes, nos dias de hoje, ainda me apetece dizer bem alto: "puños fuera"!!! Para equilibrar as coisas não podia deixar de lembrar o fantástico programa "El hombre y la tierra" do saudoso Félix Rodríguez de la Fuente que povoará, para sempre, a nossa memória colectiva. Com ele percebemos, desde cedo, a importância da causa ambiental e da defesa da natureza. Por tudo isto e muito mais, aqui rendo a minha homenagem ao serviço público extraordinário que, nesses anos, a RTVE prestou ao outro lado da fronteira. Podia continuar a desfiar as memórias mas não quero maçar os leitores que, eventualmente, me possam dispensar alguma atenção. A verdade é que este tempo foi fundamental para todos os habitantes da raia terem um contacto diário e familiar com a língua de Cervantes, reforçada com a dobragem em espanhol de todas as "películas" de cunho internacional. Por isso, do lado de cá, todos temos a mania que sabemos falar espanhol. Isso não corresponde inteiramente à verdade. Mas, sem dúvida, que dominamos na perfeição o "portuñol" ou o "espanholês"?uma verbalização que se faz entender do outro lado da fronteira e que serve, acima de tudo, para valorizar a comunicação e, por vezes, derreter o "gelo" inicial de uma primeira conversação. Como sempre, a língua aproximou as comunidades e estreitou os laços culturais. A televisão rompeu fronteiras antes da sua liberalização em 1992 em toda a Europa comunitária e criou as condições necessárias para a construção de novas pontes para o futuro. Entretanto, a partir desta base e dos fortes vínculos culturais e históricos que nos unem fui, em conjunto com muitos outros, descobrindo lugares de afecto de novas memórias em terras de Espanha, nesta fantástica geografia ibérica. A cidade de Salamanca é uma espécie de íman que nos atrai e cativa?por tudo. Hoje, as novas tecnologias da informação e comunicação aproximam tudo e todos, integrando-nos na grande aldeia. Mas, apesar dessa grande vantagem, é preciso partirmos à descoberta dos momentos e dos lugares nesta fronteira comum. Apesar da certeza do extraordinário serviço público que a RTVE prestou e que agradeço, de forma sentida, fica a necessidade de actualizarmos a informação com a nossa presença nos lugares de todas estas imagens de construção colectiva da ibéria como território de afectos cujo somatório é maior do que a soma das partes entre Portugal e Espanha.
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