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Coração que é livre, fica!
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Coração que é livre, fica!

Actualizado 17/09/2023 09:23
Miguel Nascimento

Percorro os mares da memória para me cruzar com “Chiquinho”, o romance do escritor Baltasar Lopes, considerado por quem sabe destas coisas como um dos principais fundadores da literatura cabo-verdiana. Mergulho nas páginas cheias de letras tão doces quanto sofridas nessa intensa morna de afectos e de saudade que tão bem caracteriza a nossa lusofonia. Neste romance que é expressão maior da geografia crioula, em todas as suas metamorfoses, sente-se a confrontação permanente entre o ficar na terra pobre e escassa e o partir para além-mar entre navios de esperança depositada nos dias melhores decorados de mesas mais fartas e outros pesos nos bolsos. O Chiquinho, menino-jovem, desenha a silhueta do povo de Cabo Verde que, nos anos 30 do século passado, estava permanentemente confrontado com o amor à terra quente e a vontade de partir. Daí a expressão arrebatadora: “Corpo, qu´ê nêgo, sa ta bái;/Coraçom, qu´ê fôrro, sa ta fica...”; ou seja, “O corpo, que é escravo, vai; / O coração, que é livre, fica.” O corpo precisa de partir, é escravo das circunstâncias e da necessidade de as dirimir. O coração que é livre ficará sempre amarrado ao cais, chorando de saudade pelo corpo que parte. Quase tudo vai mas a alma fica para, entre muitos outros sentimentos, alimentar a esperança do regresso como expressou, de forma magistral, Eugénio Tavares (outro nome maior de Cabo-Verde e da lusofonia) através do seu poema “Hora di Bai/Despedida”, para nele dizer que “quem não parte não pode voltar/ si ka badu ka ta biradu.” Embaldos nessa morna que canta “com água nos olhos” e dança “com alma de luto” é, na verdade, a “força que me empurra a ir És tu, esperança de voltar.” No fundo, em Cabo-Verde, em Portugal, em todos os lugares do mundo e em diversos tempos onde o corpo tem de partir, a alma fica sempre agarrada à terra da saudade. Sim, o coração que é livre, fica. O corpo que é escravo vai. Mas quem fica não parte e quem não parte não volta. Só pode voltar quem um dia partiu, mesmo deixando o seu coração livre longe do mar que aprisiona e ao mesmo tempo liberta. Hoje o mundo que conhecemos é feito de longas caminhadas até à terra prometida que, simultaneamente é, tantas vezes, madrasta. Pelo caminho ficam cemitérios cheios dos que nunca conseguiram chegar, dos que nunca puderam chegar a sonhar com manhãs claras para além das dificuldades da sobreviência. Os mares povoam-se de corpos sem direito a funeral nem ao aconchego dos mais próximos. Os corpos caídos um pouco por todo o lado deixam corações órfãos que ficaram em muitas latitudes. Há vidas jovens que foram interrompidas demasiado cedo. Há esperanças que nunca viram a costa da outra margem. E há muitos, mas muitos, que literalmente morreram na praia. O corpos seguiram o caminho que tinham que seguir para fugirem à guerra, à fome, à incompreensão e à intolerância. A partir da nossa aparente segurança ocidental contemplamos incrédulos as imagens que chegam até nós. O sangue dos mortes vai-se misturando com as ondas que batem nas areias das nossas praias. Acomodamo-nos na incapacidade de resolução dos problemas e vamo-nos acostumando à ideia que os corpos dos que partem de qualquer humana geografia vão chegando mortos até nós enquanto os seus corações, livres, ficaram no horizonte da esperança dos dias melhores. Felizmente e no meio desta incredulidade apática, ainda nos valem os escritores e poetas de ontem e de hoje, para nos dizerem através das suas palavras melódicas, que a indiferença em relação aos outros é intemporal e que apenas ficam os corações livres para acenderem velas pelo futuro da humanidade.

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