OPINIóN
Actualizado 11/02/2024 18:11:39
Miguel Nascimento

Há um texto de Mia Couto que nos fala de gatos e do medo do escuro. É um texto tão simples quanto complexo. As crianças têm medo do escuro. E nós, adultos, temos medo da claridade. Esta narrativa lindíssima faz com que os gatos atravessem a geografia do escuro, humanizando-o. Dá-lhe voz e desenha as suas angústias. O escuro, entre gatos perdidos e encontrados, entabula com o felino (Dona Gata) um diálogo extraordinário:

“(…) - os meninos têm medo de mim. Todos têm medo do escuro.

  • Os meninos não sabem que o escuro só existe é dentro de nós.
  • Não entendo, Dona Gata.
  • Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos. Agora me entende?
  • Não estou claro, Dona Gata.
  • Não é você que mete medo. Somos nós que enchemos o escuro com os nossos medos.”

Sim, na verdade, é isso. Somos nós que enchemos o escuro com os nossos medos. Este texto que aproxima o medo dos nossos pensamentos, também simplifica a sua desconstrução junto das crianças ao mesmo tempo que o amplifica junto da realidade dos adultos. A este propósito já Lucrecio, filósofo romano, dizia o seguinte:

“ Assim como as crianças, que no escuro tremem de medo e temem tudo, nós, na claridade, às vezes temos receio de certas coisas que não são mais terríveis do que aquelas que as crianças temem no escuro e pensam que acontecerão a elas.”

Nós, adultos, trememos de medo mais do que as crianças perante o escuro da claridade. Na verdade o escuro somos nós, como nos diz Mia Couto, na medida em que o enchemos com os nossos pensamentos. Às vezes, o escuro confere claridade e a luz que pensamos ver está repleta de escuridão. Somos nós que temos que decidir e separar o que deve ser separado. Nem a escuridão deve ser diabolizada nem a luz do dia deve ser idolatrada como se fosse uma verdade insofismável. Nós devemos ver com o coração mesmo que nos encontremos mergulhados na maior escuridão. Por outro lado, a luz que por vezes brilha sobre nós pode ofuscar-nos tanto que deixamos de ver o caminho e, sobretudo, o que importa. Também por isso é fundamental que, de vez em quando,regressemos à literatura infantil para, entre conversas sobre a ansiedade do escuro e a serenidade de uma gata, podermos vislumbrar o caminho por onde devemos seguir viagem. Sim, tantas vezes, o escuro somos nós, nomeadamente no tempo e no espaço em que devíamos ser luz!

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