OPINIóN
Actualizado 07/05/2023 09:13:49
Miguel Nascimento

Naquele dia e por instantes que pareceram uma eternidade, o barulho da vida deu lugar ao silêncio. Não era um silêncio que convocava o ar pesado de quando as coisas correm mal. Era um silêncio leve, mas ao mesmo tempo profundo e denso. Não tinha acontecido nada de especial nem nada fora do comum. Não se desenhava no horizonte nenhum cenário de glamur ou outro equivalente. Simplesmente, naquele momento, não havia nada para dizer. Não era preciso. A comunicação acontecia fora das palavras e dos gestos que lhe dão expressão. Sem dizer nada e não era preciso dizer nada,sentia-me envolvido por um manto de silêncio que me acolhia no seu regaço. O cansaço daquele dia convidava à quietude. Reclamava o direito a nada ser dito para não estragar o ambiente que fluía como as folhas das árvores que voam lentamente até ao chão. Uma palavra mesmo que bela corria o risco de abafar o som daquele silêncio melódico que nos embalava pela cumplicidade dentro. Ali estávamos, os dois, fitando-nos em conversas sem fim que tinham tudo menos as palavras e os sons que lhes estão associados quando são ditas. Aquele silêncio tinha ternura no seu alpendre que abria para o vale de todos os sonhos permitidos e não revelados. Aquele silêncio deixava entrar o perfume da Primavera, intensificado de tal forma que se podia escutar dentro do coração. De vez em quando a quietude era ligeiramente interrompida pela sonoridade da natureza, qual banda sonora daquele filme de silêncio quase eterno. As palavras não se gastam. Mas, de vez em quando, devem ser poupadas para que os silêncios possam assumir o seu verdadeiro lugar, falando-nos sem dizerem nada. Aquele silêncio recíproco era sentido como revelação do amor verdadeiro que só se pode exprimir em fraterna cumplicidade. Há palavras que descrevem os silêncios. Há silêncios que significam palavras cheias e coisas que não são para dizer. Às vezes precisamos de não dizer para que o sentir prevaleça. É preciso deixar fluir para que tudo aconteça. E quando acontece também não é preciso verbalizar. A sonoridade do silêncio basta para nos dizer tudo. Por isso ali ficámos, os dois, deixando que as águas da ternura nos fizessem cúmplices na arte de navegar no mar azul do amor verdadeiro. Lá fora a vida continuava o seu bulício. E nós cá dentro percorríamos as veredas do sentir sem pressa. Tudo acontecia porque tinha que acontecer. Conversávamos sem dizermos nada. Sentíamos sem dizermos nada. O silêncio imperava como se tudo fosse sempre assim, tão simples e belo. É por tudo isso é muito mais que sempre gostei que me falasses com os teus silêncios.

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