OPINIóN
Actualizado 16/02/2020
Miguel Nascimento

A sociedade actual valoriza muito a competição e estimula o culto da individualidade. Perante esta evidência nem sempre admitimos como precisamos dos outros. Sim, precisamos uns dos outros muito mais do que até, na nossa intimidade, queremos admitir. Construímo-nos com os outros e formamos a nossa individualidade com base nos exemplos, na opinião e na forma de pensar dos outros. Mesmo quando fazemos coisas em actos isolados estamos, pelo menos a nível do nosso subconsciente, a pensar nos outros, sobretudo na forma como aprovam ou reprovam o que estamos a fazer.

Às vezes a opinião dos outros sufoca-nos. Nomeadamente em meios pequenos onde quase tudo se sabe. Mas, na linha oposta, também nos deprime o facto de vivermos em grandes cidades em completo anonimato e indiferença. Se, por um lado, desejamos liberdade de pensamento e de acção em meios demasiado controlados pela opinião dos outros também nos sentimos absolutamente desconfortáveis pela indiferença dos outros em relação a nós, em particular nas geografias de maior dimensão populacional.

Como se sabe, estamos ligados aos outros através de uma comunidade natural. Precisamos dos outros para nos edificarmos. Precisamos dos outros para desenharmos existências para além da básica condição da sobrevivência e também da afirmação da condição humana. A questão genética tem uma grande importância na nossa construção da nossa individualidade. Mas ela ganha uma essência ainda mais definida através da nossa relação com os outros. Cada pessoa é um mundo. Tem características próprias que a distinguem das outras. Nós, na nossa individualidade, influenciamos os outros. Mas os outros, nas suas múltiplas formas de grupos e comunidades, têm um peso determinante na evolução da nossa individualidade. Escrevo estas coisas do senso comum para posicionar o pensamento na importância que os outros têm em nós, mesmo numa sociedade em ritmo acelerado e desenfreado que valoriza muito o sucesso individual e a competição a todo o custo.

Estamos num tempo vertiginoso, repleto de altos e baixos, com enormes desafios para a nossa condição humana. O homem é um ser gregário, precisa de se enquadrar em grupos, em comunidades. Desde a lógica da sobrevivência à formação da nossa personalidade correm rios imensos de muitas águas. Na medida em que o tempo avança e que nos damos conta que ele nos foge como o vento que passa, percebemos, cada vez melhor, a importância dos outros na nossa vida. De uma forma quase egoísta, precisamos do conforto da companhia por oposição à solidão continuada. Porém, acima de tudo, precisamos dos outros para continuarmos a ser nós; para nos continuarmos a construir e a edificar em todos os equilíbrios e desequilíbrios que os outros nos transmitem. Sem essa relação, por vezes de quase confronto, não poderíamos ser como somos. Seríamos, certamente, outra entidade qualquer, despojada da riqueza do toque, da palavra, do afecto e, naturalmente, da confrontação.

O grupo ou os grupos a que pertencemos enriquecem-nos mesmo quando nos deixam de rastos com a pressão que exercem sobre nós. Tudo o que fazemos está naturalmente condicionado pelos outros. E ainda bem. O que não podemos fazer é deixar de ser nós para sermos o que os outros quiserem que nós sejamos. A nossa individualidade deve prevalecer sempre, mesmo que saibamos que ela é o resultado de todas as nossas relações com os outros, desde sempre. Ninguém gosta de ser confrontado ou exposto pelo grupo como se estivesse completamente nu perante um espelho. Mas é nesse patamar que evoluímos e reforçamos a nossa individualidade. Noutra perspectiva, todos se sentem mais seguros e reconfortados quando, perante um desaire ou insucesso, o grupo nos agarra e não nos deixa ficar para trás. É neste sentido que a nossa individualidade deve estar sempre preparada para dar e receber, numa lógica de construção permanente, onde nós somos nós como somatório da nossa relação com os outros.

Para que isso aconteça na sua plenitude devemos olhar menos para o umbigo e levantar a cabeça em direcção aos outros, preparando-nos para escutar mais do que falar, cultivando mais a humildade, a entreajuda e o prazer da viagem colectiva. Nos ciclos da vida, entre os dias e as noites, teremos tempos próprios para celebrarmos a nossa individualidade e a sempre necessária solidão temporária. Mas, nesse trajecto, teremos sempre confiança no futuro por sabermos que pertencemos a um ou mais grupos, onde poderemos celebrar as nossas vitórias e confortar as nossas derrotas. É aí nessas geografias da condição humana que nos completamos. É aí que nós somos nós, verdadeiramente.

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