A menina do mar

Sophia de Mello Breyner Andresen, uma das grandes figuras do nosso tempo, deixou-nos em 2004. No início de Julho (2014) o seu corpo foi trasladado para o Panteão Nacional como forma de homenagem à escritora universal e cidadã de muitas causas. Para os leitores desta rúbrica menos familiarizados com este espaço luso de evocação da memória devo acrescentar apenas que o Panteão Nacional está instalado em Lisboa, na Igreja de Santa Engrácia, e destina-se a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao país. A trasladação de Sophia para o Panteão Nacional - que acontece por deliberação unanime da Assembleia da República - assume uma grande carga simbólica e também de grande consenso político num tempo em que se assinalam os 10 anos do desaparecimento da autora de "Menina do Mar" e os quarenta anos do "25 de Abril". Esta mulher da poesia, das letras e da cidadania recebe agora esta grande honra que faz da sua memória um símbolo colectivo, mas, como disse José Manuel dos Santos na cerimónia de evocação da escritora, esta entrada no Panteão "não faz, nunca fará, de Sophia um escritor oficial ou um poeta de regime, mesmo daquele, o nosso, que reconheceu e que ela reconheceu. Assim é e assim será sempre, porque a poesia de Sophia torna impossível a sua apropriação, a sua expropriação. Há nela a liberdade livre, a vida viva, a grandeza nua, o fogo firme que a não deixa ser senão de quem nela encontra o que ela é". E eu encontro nela uma grande inspiração de liberdade e uma poesia permanente que evoca o 25 de Abril com um significado profundo que toca o coração de todos os democratas que esperaram por essa bela madrugada, "o dia inicial inteiro e limpo/Onde emergimos da noite e do silêncio/E livres habitamos a substância do tempo". Esta mulher, esta mãe de cinco filhos (que a motivaram a escrever contos infantis) criada na velha aristocracia portuguesa, educada nos valores tradicionais da moral cristã, foi dirigente dos movimentos universitários católicos e uma grande opositora ao regime ditatorial de Salazar. É célebre a sua "Cantata da Paz" que alertou consciências para os valores da justiça, da liberdade e da igualdade; de resto, como dizia: "Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar ". E Sophia não ignorou na sua poesia o combate aos totalitarismos e a defesa dos mais oprimidos, sempre com um grande sentido de justiça. Usou a poesia para combater as desigualdades. Mas, sempre que as suas fortes palavras não conseguiam mudar o mundo, como sempre desejou, entregou-se aos meios operacionais da acção política. Foi solidária com os presos políticos e esteve presente nos momentos cimeiros da oposição antifascista. No dia em que se abriram as portas da prisão de Caxias lá estava ela, de cravos na mão, a saudar todos os presos políticos que conheciam de novo a liberdade. Apesar da sua origem aristocrática e costela monórquica que nunca enjeitou, Sophia foi uma mulher muito ligada ao povo, ao seu sofrimento e às precárias condições em que então se vivia evocando sempre "Os que avançam de frente para o mar / E nele enterram como uma aguda faca / A proa negra dos seus barcos / Vivem de pouco pão e de luar". Em 1975 seria eleita deputada à Assembleia Constituinte pelo Partido Socialista. E na política fez ouvir a sua voz dizendo que aos pobres de Portugal é constume dizer "Tenham paciência", mas na verdade devemos dizer-lhes: "Não tenham paciência!". Esta mulher forte, genuína e sensível é um exemplo para todos nós. Mas não podemos de modo algum resumir a sua vasta obra à intervenção política. Isso seria extremamente redutor e de uma enorme injustiça. Também não tenho capacidade para analisar a sua obra e classificá-la desta ou daquela forma. Sou apenas um leitor que aprecia e se deixa tocar pela sua narrativa. Li Sophia quando andava na escola. Os seus poemas e contos ainda hoje, felizmente, fazem parte dos programas curriculares. E é precisamente na escola, no ensino e nas geografias da cultura que a sua memória deve ser preservada. O Panteão Nacional é uma honra muito grande. Esta mulher que respirava pelo mar e que dizia que "metade da minha alma é feita de maresia" ali ficará, neste espaço, partilhado com outras grandes figuras da história de Portugal e do mundo, lembrando-nos sempre este povo que é grande, repleto de mar e de poesia como na sua obra sem fim. A Sophia, tal como a Fernando Pessoa, a poesia acontecia-lhe e enchia-se de um "Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim. A tua beleza aumenta quando estamos sós. E tão fundo intimamente a tua voz. Segue o mais secreto bailar do meu sonho. Que momentos há em que suponho. Seres um milagre criado só para mim". Dificilmente visitarei Sophia no Panteão Nacional apesar de ficar muito satisfeito com esta distinção. Mas, terei todo o prazer de, frequentemente, revisitar a sua obra, mergulhar no seu mar de criatividade, porque "Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar". Obrigado Sophia!